A fuga de Cabul e o “reinício” da História
Lorenzo Carrasco e Geraldo Luís Lino
Especial para Resenha Estratégica do MSIa
As imagens de helicópteros decolando da embaixada dos EUA e do caos no aeroporto da capital afegã Cabul, no fim-de-semana de 14-15 de agosto, com centenas de pessoas desesperadas se acotovelando, se pisoteando e morrendo, para tentar embarcar em algum dos poucos aviões que deixavam o país, não puderam deixar de evocar outra fuga açodada, da Saigon de 1975, frente ao avanço inexorável do exército norte-vietnamita sobre a capital do então Vietnã do Sul.
Em uma demonstração da persistência e do profundo impacto daquela fuga na psique estadunidense, o secretário de Estado Anthony Blinken protestou, em uma entrevista à rede CNN: “Isso não é Saigon. Fomos ao Afeganistão há 20 anos com uma missão, e essa missão era lidar com as pessoas que nos atacaram em 11 de setembro. E nós tivemos sucesso nessa missão (O Estado de S. Paulo, 16/08/2021).”
Para qualificar a desastrosa ocupação militar do Afeganistão pelos EUA e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a sua retirada esbaforida diante do Talibã, sucesso é uma palavra um tanto questionável. A menos que se refira aos colossais lucros do “complexo de segurança nacional” estadunidense, que abocanhou grande parte dos 2 trilhões de dólares oficialmente gastos na “missão” afegã. E sem mencionar o fato de o país ter voltado a ser de longe o maior produtor mundial de ópio (cultivo que, anteriormente, havia sido quase erradicado pelo Talibã), sob a “proteção” das tropas estrangeiras.
Um dos primeiros a evadir-se foi o agora ex-presidente Ashraf Ghani, que fugiu para um destino ainda ignorado com alguns assessores e, segundo informações locais, uma grande quantia em dinheiro. Ghani é um ex-tecnocrata do Banco Mundial, detentor de um doutorado na Universidade Columbia (EUA) e, ironicamente, autor de um livro intitulado “Consertando Estados falidos” (cujos ensinamentos, pelo visto, não conseguiu aplicar no seu próprio país).
Por outro lado, se a fuga de Saigon ressaltou um limite da capacidade militar estadunidense frente a um oponente determinado e com um claro objetivo de libertação nacional, além da forte oposição interna à Guerra do Vietnã, a de Cabul, compartilhada com os últimos aliados dos EUA remanescentes no país, o Reino Unido e a Alemanha, simboliza algo mais profundo: o fracasso da ordem hegemônica global que os EUA se empenharam em implementar no período pós-Guerra Fria, utilizando a OTAN como a sua gendarmeria preferencial.
No Afeganistão, nada menos que 30 países, inclusive vários não integrantes da Aliança Atlântica – Geórgia, Austrália, Nova Zelândia, Finlândia, Jordânia e Coreia do Sul – contribuíram para a lista dos quase 3.600 militares das forças invasoras mortos nas duas décadas da ocupação (na qual não estão incluídos os mercenários, cujo número de baixas é incerto).
Com uma honestidade pouco comum entre estadistas ocidentais, o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier admitiu: “As imagens de desespero no aeroporto de Cabul são vergonhosas para o Ocidente político. Nestes dias, estamos experimentando uma tragédia humana, da qual compartilhamos a responsabilidade… (Isto é) um ponto de inflexão político que nos sacudirá e mudará o mundo (RT, 17/08/2021).”
Por ironia, a saída das tropas soviéticas do Afeganistão, em 1988, após dez anos de outro conflito fracassado, também foi uma precursora da dissolução da União Soviética, ocorrida três anos depois, ocasionada pela instabilidade intrínseca de uma estrutura política, econômica e cultural insustentável – que, aliás, guarda não poucas similaridades com a estrutura hegemônica encabeçada pelos EUA. Em um comentário feito no âmbito do Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, em 5 de junho, o presidente russo Vladimir Putin fez um quase profético comentário a respeito:“Eu lhes direi, como cidadão da antiga União Soviética. Qual é o problema dos impérios? Eles se acham tão poderosos que podem dar-se ao luxo de cometer pequenos erros e falhas. Que podem comprar alguns, amedrontar outros, fazer acordos com terceiros, dar presentes a outros, ameaçar outros ainda com navios de guerra. Pensam que isso resolverá seus problemas. Mas a quantidade de problemas está crescendo. Chega o momento em que já não conseguem lidar com eles. Os Estados Unidos estão, em passo seguro, em passo firme, seguindo claramente o caminho da União Soviética (Sputnik Brasil, 05/06/2021)."
Foi em meio àquele ambiente de triunfalismo do final dos anos 1980, quando o presidente George H.W. Bush (1989-1993) proclamou a “Nova Ordem Mundial”, que o cientista político Francis Fukuyama lançou a falaciosa tese do “fim da História”, sobre a alegada supremacia da “democracia liberal” ocidental como forma final de organização política e econômica da humanidade. Conceito hegeliano que o Establishment estadunidense, imbuído do seu fundamentalismo “excepcionalista”, nas décadas seguintes, se empenharia em expandir para justificar boa parte das suas intervenções em países recalcitrantes.
A promoção da “democracia”, ao lado da “guerra ao terror” – iniciada, precisamente, no Afeganistão – e da “responsabilidade de proteger” populações supostamente ameaçadas por seus líderes nacionais, têm justificado a longa lista de intervenções militares promovidas pelos EUA e aliados, na antiga Iugoslávia, Iraque, Líbia, Síria, Iêmen e Somália, além das numerosas ações encobertas em países e regiões nas áreas de influência da Rússia e da China, casos da Ucrânia, Geórgia, Bielorrússia, Hong Kong e outros. A maioria, com resultados desastrosos para as respectivas populações.
No entanto, contrariando as expectativas de Fukuyama et alii, a marcha da História não deteve o seu avanço e o esgotamento da capacidade estadunidense de impor os seus desígnios manu militari, já vislumbrado no Iraque e na Síria e explicitado no Afeganistão, é um dos marcos da mudança de época em curso, ressaltada pela emergência do eixo eurasiático encabeçado pela dobradinha China-Rússia, como o novo centro de gravidade geoeconômico e geopolítico mundial.
Não há dúvida de que o aparato de inteligência e outros setores do “complexo de segurança nacional” tinham pleno conhecimento de que a retirada do Afeganistão implicaria no retorno imediato do Talibã, tendo à disposição meses para planejar uma retirada ordenada de suas forças, inclusive grande parte do equipamento militar, além de se prepararem para a inevitável onda de fugitivos. Porém, preferiram aferrar-se em público à falaciosa sugestão de que o corrupto e impopular governo de Ghaniteria condições de se manter, até mesmo em uma imaginária coalizão com o Talibã. E não se pode descartar a possibilidade de que, diante da inevitabilidade da sua saída, os EUA tenham decidido deixar uma bomba-relógio de instabilidade no coração da região centro-asiática. Mas a celeridade da fuga de Cabul apenas agravou a humilhação da retirada, praticamente, como diz o vulgo, com as calças na mão.
Agora, tanto a China como a Rússia estão articuladas para impedir que o Afeganistão se converta em um foco de instabilidade em uma região crucial para a integração físico-econômica eurasiática. Um sinal dos novos tempos foi o fato de o secretário de Estado Blinken ter conversado por telefone com seus colegas russo, Sergei Lavrov, e chinês, Wang Yi, na segunda-feira 16 de agosto, depois de Moscou e Pequim terem manifestado a intenção de não só manter seus diplomatas em Cabul, mas também entabular negociações construtivas com o Talibã, tendo a China já reconhecido o novo governo.
A intenção evidente é oferecer condições de desenvolvimento econômico ao regime Talibã, atrelando o seu destino à Organização para Cooperação de Xangai (OCX), da qual o Afeganistão já é membro observador e que acaba de elevar o Irã, outro vizinho do Afeganistão, a membro permanente. E é simbólico que a entidade, cujas molas propulsoras são a China e a Rússia, venha a encarnar na região o princípio cooperativo e não hegemônico de um novo ordenamento internacional.
Para os EUA, seria desejável que as lições da fuga de Cabul convencessem as suas elites dirigentes da insustentabilidade das suas aspirações hegemônicas e as trocassem por uma agenda construtiva convergente com a ordem cooperativa que emerge na Eurásia, a qual, todavia, não poderá consolidar-se plenamente sem um equilíbrio econômico global apoiado na reindustrialização e no desenvolvimento da região euroatlântica, com a participação efetiva dos EUA e seus aliados.
Entretanto, só o tempo dirá se tais grupos de poder, viciados em impor os seus interesses com mísseis, bombas, balas e montanhas de dólares, aceitarão normas de conduta mais condizentes com as aspirações civilizatórias de toda a humanidade. Ou, em outras palavras, com um “reinício” da História.